Documentário faz retrato bem (mal) humorado sobre vida de cartunistas
'Malditos cartunistas' teve primeira exibição pública nesta quarta, no Rio.
Filme traz macetes dos criadores de tiras e registro histórico de Glauco.
Qual a diferença entre um cartunista, um chargista e um quadrinista? Quais são os segredos e os macetes para produzir uma tira de jornal todo santo dia? Humor é inspiração ou transpiração? Saber desenhar é um dom?
Essas e outras muitas perguntas sobre o trabalho dos humoristas do traço são respondidas por 25 representantes de diversas gerações em "Malditos cartunistas", documentário de cerca de 90 minutos apresentado em primeira mão nesta quarta-feira (10) durante a Rio Comicon, convenção de quadrinhos realizada na Estação Leopoldina até domingo.
Dirigido por Daniel Garcia, 31, e Daniel Paiva, 29, ambos artistas independentes que publicam seus trabalhos na revista "Tarja preta", o filme cobre desde a velha guarda do cartum, formada por nomes como Ziraldo, Jaguar, Reinaldo e Nani, passando pelos também veteranos Angeli, Ota, Adão e Caco Galhardo, até as safras mais recentes, com gente como Allan Sieber, Arnaldo Branco, André Dahmer e Chiquinha.
"No geral, os cartunistas são muito diferentes entre si, mas também são muito parecidos porque todos têm sempre alguma maluquice", revelou Daniel Paiva ao G1, em entrevista que você pode ver no vídeo acima.
E são justamente essas pequenas "maluquices" que levaram às gargalhadas o público que lotou a sessão na noite de quarta para ver o documentário.
Em um dos pontos altos, o cartunista e ex-editor da revista "Mad" no Brasil, Otacílio D'Assunção, o Ota, revela a sua rotina de trabalho. São 11h48, e Ota tem a tela do computador aberta em uma tira sua já publicada no dia anterior pelo "Jornal do Brasil". Faltam 12 minutos para o fechamento da seção de tiras do dia seguinte do jornal e ele ainda nem começou a pensar na piada. Enquanto conversa com os documentaristas, sem o menor sinal de constrangimento, vai escrevendo por cima dos balões da tira anterior, corrige o posicionamento de um desenho aqui e outro ali e... voilá, está pronta mais uma tirinha.
Enquanto isso, em um estúdio à meia-luz muito longe dali, o perfeccionista Angeli fala sobre como prepara uma charge para a página 2 da "Folha de S. Paulo". "Começo às 13h, mas mesmo se a ideia já estiver formada, não considero a charge terminada até as 20h", diz, referindo-se ao horário de fechamento da edição nacional do jornal.
Fazendo coro com Ota, o carioca André Dahmer, da geração de quadrinistas revelada pela internet com trabalhos como a série "Os malvados" e "Rei Emir", publicada às sextas no G1, desmistifca a reciclagem de desenhos: "Quem foi que nunca reaproveitou uma tira?", sugere, sem falso moralismo.
Cartaz do filme 'Malditos cartunistas', de Daniel Garcia e Daniel PaivaCartaz do filme 'Malditos cartunistas', de Daniel
Garcia e Daniel Paiva (Foto: Reprodução)
Profissão: manicure
Mesmo que consagrados no universo do humor gráfico nacional, boa parte dos artistas entrevistados não abandona nunca o tom autodepreciativo ao falar de seu trabalho e de listar os episódios cômicos que envolvem o reconhecimento da profissão fora do meio.
Eloar Guazzelli diz que o cartunista é "como um filósofo", com a diferença que um tem sempre uma verdade para apresentar em uma mão e o outro... tem sempre "uma bosta". A gaúcha Chiquinha reclama que, quando diz aos amigos que vai trabalhar, recebe sempre um comentário sarcástico na linha "sei, sei... vai lá fazer os seus desenhinhos".
Mas é de Lourenço Mutarelli, autor de trabalhos depressivos nos quadrinhos da década de 90, que parte a melhor anedota sobre o complexo de vira-lata de que os autores de HQ e cartum em geral sofrem. "Quando vou preencher registros em hotel, a brincadeira que tenho feito agora é colocar [no campo] 'profissão: manicure'", brinca.
Mestres na arte de sacar uma boa piada da cartola quando o público menos espera - afinal, é esse o segredo (ou um dos) de uma boa tirinha - são os próprios cartunistas, portanto, que conduzem e dão brilho ao documentário. Sem grandes recursos estéticos, a câmera está quase 80% do tempo fixa em um tripé, a iluminação e o áudio por vezes são precários e os efeitos visuais se limitam a páginas de cartuns e tirinhas sobrepostas sobre os depoimentos dos entrevistados.
Para a história
Os diretores fazem questão de frisar, no entanto, que a versão do filme exibida no Rio é ainda preliminar e pode sofrer alterações mais adiante. Mas o principal valor do filme dos Daniéis - é esse, aliás, o nome da produtora de Garcia e Paiva - está provavelmente no registro histórico desses artistas, artigo ainda raro na produção audiovisual do país à exceção de alguns poucos programas produzidos para televisão.
Assassinado com seu filho em março deste ano em seu sítio em São Paulo, o geralmente recluso cartunista Glauco, autor das tiras do Geraldão, aparece em um de seus prováveis últimos depoimentos gravados por uma câmera. A entrevista foi realizada em 2007, na raça.
"A gente já vinha tentando falar com ele, ele desmarcou algumas vezes, choveu, ele teve que cuidar da horta... e acabou que a gente não tinha confirmado, mas pegou o endereço na internet e fomos falar com ele. Valeu a pena pra caramba, a gente é fã dele e foi maneiríssimo conhecê-lo", diz Garcia.
E, para os saudosistas e conservadores que torceram os narizes para o novo guarda-roupas feminino de Laerte, o filme traz também um inestimável registro: em seu depoimento, gravado antes da fase cross-dresser que o cartunista diz ter vindo para ficar, Laerte aparece de cabelos curtos e vestido de macho. Porque, como defende Jaguar em um trecho do trailer, essa é uma "profissão de homem: cartunista e estivador". Só se for no tempo do "Pasquim"...
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